‘Por baixo dos pés da chuva’, obra multilinguística

Poemas do israelense Rami Saari chegam ao Brasil pela primeira vez e encantam por seu viés multicultural


I

Um hebreu que nasceu em Israel, filho de um romeno e de uma argentina, que vive entre Helsinque e Atenas, fala um perfeito castelhano e conhece mais de uma dezena de idiomas, e ainda é poeta, só podia produzir uma obra multilinguística e multicultural, como bem a definiu o jornalista, ensaísta e poeta Moacir Amâncio, doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).

Esse poeta chama-se Rami Saari (1963), tradutor para o hebraico de uma centena de livros das literaturas albanesa, catalã, espanhola, estoniana, finlandesa, grega, húngara, turca, portuguesa e brasileira, que agora, pela primeira vez, tem uma antologia de seus versos publicada no Brasil, com texto de apresentação de Moacir Amâncio, professor titular da USP, que fez também algumas adaptações para o Português do Brasil na tradução do hebraico, de autoria do tradutor português Francisco da Costa Reis.

A obra tem por título Por baixo dos pés da chuva: a poesia de Rami Saari (São Paulo, Editora Laranja Original, 2023), que é a última frase do poema “No passado”, em que o poeta faz uma rememoração de sua infância e juventude, quando vivia na zona rural, com os irmãos, em meio a vinhedos: Quando eu era um rapaz amorreu excitado / em leitos de gergeseus e de jebuseus, / gostava de colecionar falas das suas bocas, / de recolher gotículas de saliva e palavras / entre os seus lábios e línguas. (…) / Já então eu não era como os meus irmãos, / mas mais como as pedras qu e crescem no silêncio. / Fora dos leitos, eu era solitário, / nas aldeias precipitado e exaltado; / quase sempre no caminho, vagueando / para lá das montanhas. Com a terra eu era quente, / bom e úmido como um par / de meias remendadas / por baixo dos pés da chuva.

II

Ao final da antologia, que recolhe poemas de oito livros do autor, o leitor vai encontrar uma lista de 31 notas que o tradutor acrescentou para ajudá-lo a entender melhor algumas frases ou referências geográficas ou costumes judaicos que estão nos poemas. É o caso poema “Na casinha da Rua Halafta” em que se lê: “Na casinha da Rua Halafta, / as tardes passam tranquilamente. / Os amigos vêm, partem e sabem ao odor da mirra. / Na copa da palmeira há uma coroa de chuva transparente. / As rosas quase que irrompem para dentro da casa. / E nestas tardes de infinito outono estou sempre no terraço, / a observar as luzes de T alpiot em frente, / pensando em que estações estarás agora / e como desapareceste, igual à vida”.

Consultando as notas, o leitor vai saber que Halafta é a denominação de uma rua da Jerusalém judaica que homenageia um rabi e Talpiot o nome de um bairro judeu no limite sudeste da cidade. Do poema, pode-se dizer que se trata de uma pura descrição em que se fundem o pictórico e a atmosfera da terra judaica, em imagens que evocam ao final a lembrança e o afeto deixados por alguém que se foi. Tudo isso se expressa por uma figura de linguagem chamada sinestesia, ou seja, a união de termos que expressam diferentes percepções sensoriais.

Já no poema “Continuidade”, um exemplo do cosmopolitismo do autor, constata-se que o poeta pensa por imagens, atrás das quais pulsa a emoção: “Neve, pinhais e noite. / Agora a Catalunha é como uma ferida aberta / fundo na escuridão. / Quatro corvos negros / recortam-se no fundo da lua, / sempre a mesma lua / à janela do hospital. / E fumo só lá fora, / agitado como uma folha ao vento, / mas a única droga de que não me desliguei / continua a ser o amor”.

Outro poema que é pura emoção é aquele que tem por título “Jerusalém” em que o fenômeno poético não deixa de estar contaminado pela desolação de ver a cidade condenada a suportar, de tempos em tempos, a ira e a insensatez dos homens. Segue o poema: “Quão triste e patética é a hora do regresso / aos teus becos confinados e esbatidos pela distância. / És amarga e totalmente transparente, / uma estufa de loucura, jardim de lágrimas, / o tempo despe-se nos teus numerosos canteiros. / Porque já saiu de ti / toda a Torá, / e a palavra de Deus / foi, &e acute; e será a tua desgraça. / Como te tornaste um lamento, / tu, anzol na garganta dos que te amam, / a cidade cujos próceres / vivem na tua entrada”.

Nesta última frase, segundo o tradutor, há uma alusão ao subúrbio de Jerusalém Mevasseret Tzion, onde ocorreram uma matança de cristãos por volta de 1187 e várias batalhas entre judeus e árabes à época da Guerra da Palestina de 1948.

Não se imagine, porém, que se trata de um intelectual judeu ortodoxo. Pelo contrário. Como observa Moacir Amâncio, Rami Saari prefere declarar-se um hebreu que, em sua fé, é mais cristão do que judeu, apesar de não se ter convertido ao cristianismo oficialmente. Tampouco admite-se como canaanita, movimento liderado pelo poeta Yonatan Ratosh (1908-1981) que evoca um passado remoto do povo e da região onde hoje está o Estado de Israel. Para Saari, o canaanismo seria hoje mais uma alucinação perigosa, pois estimularia um levante de fanáticos religiosos extremistas de direita.

III

Nascido em Petah Tikvá (Portal da Esperança), cidade ao Norte de Tel-Aviv, Rami Saari passou a infância em Israel e na Argentina. Descende de pai nascido na cidade de Iasi, na Romênia, e de mãe nascida em Buenos Aires. Estudou e ensinou Filologia Semítica e Línguas Urálicas na Universidade de Helsinque, Budapeste e Jerusalém e doutorou-se em Linguística Semítica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. A sua tese de doutoramento foi publicada em obra intitulada em hebraico Millot-ha-yahas ha-malteziyot (Preposições na Língua Maltesa), editada pela Editora Carmel, de Jerusalém, em 2003.

Além de publicar doze livros de poesia em hebraico, Saari atua como tradutor desde 1996. Entre essas traduções, estão poemas de autores portugueses como Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa (e seus heterônimos), Manuel Alegre, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Vasco Graça Moura, Valter Hugo Mãe, Eduardo Pitta, Luís Miguel Nava, Vitorino Nemésio, Humberto Teixeira e Arménio Vieira e contos de Altino do Tojal, Herberto Helder, Miguel Torga e José Viale Moutinho.

Traduziu também obras dos portugueses Eça de Queiroz e José Saramago, dos brasileiros Jorge Amado, Ronaldo Correia de Brito, Andréa del Fuego e Luiz Ruffato e dos angolanos Pepetela e José Eduardo Agualusa. Para aperfeiçoar seu trabalho como tradutor de português para o hebraico, ganhou bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, que lhe permitiu passar seis meses em Lisboa.

Por seu trabalho poético, ganhou em Israel o Prêmio do Primeiro-Ministro para Obras Literárias, em 1996 e 2003, e pelas suas traduções, em 2006, o Prêmio Saul Tchernikhovsky. Em 2010, conquistou o Prêmio da Academia da Língua Hebraica. Desde 2002 até 2006, trabalhou como chefe de redação das páginas literárias sobre a poesia israelita no site Poetry International.





Por baixo dos pés da chuva: a poesia de Rami Saari, com tradução do hebraico de Francisco da Costa Reis e adaptação e texto de apresentação por Moacir Amâncio. São Paulo: Editora Laranja Original, 135 páginas, R$ 75,00, 2023. E-mail: contato@laranjaoriginal.c om.br Site da editora: www.laranjaoriginal.com.br Site do autor: www.ramisaari.com/rami-saari/



(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2 012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


“Quatro cinco um”
“Baia da Lusofonia/Lisboa”


PORTUGUESE POETRY translated by Saari to Hebrew
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Laranja Original


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